Enquanto os olhares se cruzavam, havia sonhos, desejos, fantasias de dois seres permeados e misturados.
É fato que passar um tempo ao lado de alguém nos faz ver a nós próprios pelos olhos do outro. Parece que passamos a nos sentir e até a ser aquilo que o outro ora autoriza, ora incentiva, ora obriga-nos a ser, sobretudo se o relacionamento fora duradouro. Passamos a nos reconhecer no olhar amoroso de quem é o nosso centro, e somente neste.
É sempre encantador ver como nos veem os olhos apaixonados. Talvez nos amemos mais, vendo-nos pelos olhos de quem também amamos.
E, no aparente esfacelamento de um amor, tudo o que temos é o não olhar. Deixamos de ser vistos, e parece difícil nos reconhecer assim. É esse não olhar que traz a ausência, nem sempre física, mas da alma; é por ele que chegam todas as duras críticas, toda uma não existência que dilacera lentamente duas almas, ainda que se demore a reconhecê-la.
Enquanto os olhares se cruzavam, havia sonhos, desejos, fantasias de dois seres permeados e misturados.
Amalgamados no encanto do amor, em cada um, um pouco do outro e de seu olhar. Foi assim que deixou de existir um hipotético ser singular para nascerem seres forjados pelo olhar do outro, portanto, um pouco outro também. Agora, afastar-se é perder-se de si.
Esse cara, que agora você odeia amar, esteve com você quando precisou ser operada às pressas; chorou com você a morte do seu pai; viveu a angústia de tantas aprovações e reprovações; foi ele que segurou sua mão para o teste da carteira de motorista; foi essa “desgraça” que se arriscou com você na direção naquela estrada horrorosa; era dele o único telefone que você ainda tinha de memória. E, agora, não pode mais ligar!
A pessoa mais importante para você deixou o protagonismo da sua vida. Ele foi recurso, apoio, norte, fortaleza, porto seguro, foi seu tudo.
E a dor que invade o peito é a mesma que invalida todos os momentos de segurança que ele mesmo lhe trouxe, nas tantas dores e nos desafios da vida.
Sim, nós não sabemos como lidar com o fim de um laço que trouxe tanto recurso. Parece que estamos sendo engolidos pela dor. A separação é um gatilho para todas as dores que esse ser, outrora, ajudou você a enfrentar. Por isso, a dor no peito; por isso, a falta de vontade de viver; por isso, caminhar já não é tarefa fácil e comer parece uma agressão.
Mas o que nos interessa agora é como sair desse embuste, prontinhas para a vida!
Como é que se vira a chave nesse coração cheio de dor? A receitinha bem que poderia ser acompanhada de uma chávena de chá da vovó! Primeiro, um silêncio. Depois, uma longa visita aos bons momentos, uma bisbilhotada naquilo que nos fez sorrir ao lado dele. De pronto, um novo olhar que permita sabermos que tudo isso esteve ali disponível para nós. Era o melhor dele todinho para você, e isso não pode mais ser mudado.
E foram muitos os momentos que fizeram você crescer, amadurecer, que lhe ensinaram a amar.
O que se aprende de fato, não tem como esquecer! Sim, você irá amá-lo para sempre, porque o vivido não pode ser apagado nem invalidado, só ressignificado. Nem que se quisesse, poderiam ser retirados todos os beijos e abraços. Não tem como. É isso que faz o amor ser para sempre. Foi e sempre será! O amor, o olhar, os sorrisos estiveram disponíveis de modo recíproco.
Para o amor, não há enterro nem incineração! O amor presenteia os que sabem segurá-lo com dignidade na chegada e na partida!
Isabel Pedrosa, nas páginas de “Nas tuas mãos”, ensina, entre tantas coisas: “A separação pode ser o ato de absoluta e radical união, a ligação para a eternidade de dois seres que um dia se amaram demasiado para poder amar-se de outra maneira, pequena e mansa, quase vegetal.
” Sim, acolhendo tudo que foi, sem querer expulsar o amor vivido, ele se torna serenidade para seguirmos, na certeza de que ele próprio existe.
“O que foi se transforma numa fonte de força quando se reconhece o passado e se concorda com ele, como ele foi.” (Bert Hellinger)
Tomar o amor como um presente, ainda que não seja mais presença, eis a grandeza de amar, eis a eternidade do amor.
Somente em paz com a partida é que o que foi pode descansar em nossa história. E é dessa história que nasce sua nova alma, agora tecida na alegria de saber-se capaz de amar o indisponível.
De agora em diante, você já sabe que se refaz no olhar do outro, mas que também é você quem faz o outro.
Se você olhar com carinho para essa possibilidade, vai perceber que ela só é avessa a convenções, pois é alívio para a alma liberta dessas. Em paz com a partida, novas percepções, novos projetos, novas necessidades, novos caminhos, novos gostos. Não somos feitos para solitude, mas para sermos seres compartilhados, amalgamados em outras almas.